Existem mundos que merecem ser conhecidos e não são mágicos e nem mesmo ilusórios, mas bem reais. Têm como único defeito o fato que só podem ser vistos somente por quem padeceu o fascínio da Luz

Pavel Florenskij preso no Gulag, das Ilhas Solovkij
Impressionam o seu lúcido e implacável argumentar científico e matemático, o rigor de sua filosofia, a vastidão de sua cultura, unidos a uma fé absoluta em Deus. Ele era sacerdote da Igreja ortodoxa, pai de cinco filhos e autor de importantes descobertas científicas, a ponto de se ver obrigado, pelo regime comunista, a continuar suas pesquisas entre trabalhos forçados e torturas.
Florensky, nascido no Caucaso em 1882, vinha de uma família leiga, de cultura positivista. Aproximou-se da fé quando, como amava dizer, desceu sobre ele o Espírito Santo, mas conservando a atitude de um pensamento matemático físico. Viveu entre contradições fortemente marcadas e as teorizou à luz da fé e da reflexão racional. A começar pela primeira contradição radical: “A verdade é inalcançável – não se consegue viver sem a verdade”. E a segunda:
“Não sei se a Verdade existe ou não, mas, com todo o meu ser, sinto que não posso deixar por menos; sei que, se existe, para mim é tudo: razão, bem, força, vida, felicidade. Quem sabe, não exista, mas eu a amo mais do que tudo o que existe… coloco nas mãos da verdade meu destino”.
A obra de Florensky é percorrida pelo pensamento simbólico, o valor mágico da palavra e o valor sagrado da memória, que é a presença no tempo da eternidade. Permanece o mistério de um matemático que foi sacerdote; de um místico que foi um cientista. Como é possível a pesquisa científica, se estamos deslumbrados pela Verdade divina? A obra de Florensky demonstra que é possível se opor a este preconceito. Mais ainda, ele sugere que a procura do mistério pode suscitar a paixão pela pesquisa científica, pois impulsiona para além dos confins do já conhecido.
É gritante o contraste entre o pensamento místico, a vida ascética de Florensky e o nosso mundo e nosso tempo. Mas, como ele mesmo escreveu: “Os ascetas da Igreja estão vivos pelos vivos e mortos pelos mortos”.
Em uma de suas últimas cartas do gulag, escreveu: “A vida voa como um sonho e frequentemente não se consegue fazer nada, antes que fuja o instante em sua plenitude. Por isso, é fundamental aprender a arte de viver, entre todas a mais árdua e essencial. Preencher cada instante com um conteúdo substancial, conscientes de que este não se repetirá jamais como tal”. Em julho de 1997 foram encontradas as fossas comuns de prisioneiros da Ilha de Solovki, perto da Finlândia, onde Florensky esteve preso. Entretanto, na Rússia, não restam nem mesmo os seus despojos.
Na noite do 7 de novembro de 1916 Florensky passou a recolher as cartas endereçadas aos filhos. Com o rápido precipitar dos eventos na Rússia e a tomada do poder pelos comunistas, padre Pavel teve que escrever os textos na consciência do trágico epílogo da sua vida.
Escritas nos raros momentos de tempo livre, depois de intermináveis dias e noites massacrantes e, muitas vezes, incansado trabalho, as cartas são uma apaixonada confissão de uma alma dilacerada, que adere com fé e esperança às terríveis situações existenciais, não obstante seja cada vez mais despojada de sua dignidade. Uma documentação riquíssima dos dias terríveis da perseguição, em que biografia e teoria, vida e pensamento, unem-se intimamente na experiência trágica de um testemunho entre os mais autênticos e radicais do século passado. O epistolário do gulag é uma documentação extremamente preciosa para descobrir a complexa polifonia espiritual deste padre ortodoxo; para reconstruir o seu diálogo com o mundo e com a vida através dos afetos mais queridos; um diálogo ininterrupto em que se unem, até os últimos dias, profundeza e delicadeza, razão e paixão, inteligência e sentimento.
A chave de volta para entrar no coração do epistolário encontra-se num fragmento de caderno de anotações dos anos vinte: “Nunca trair as tuas mais profundas convicções interiores. Lembra-te que cada compromisso leva a um novo compromisso, e assim por diante”. Esta anotação poderíamos entendê-la como uma das exigências mais íntimas e radicais da sua vida e da sua obra.
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