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A vida em mutirão

Em um país que confunde favela com periferia, e ambas com violência, importa esclarecer que tanto em uma quanto na outra surgem, crescem e se espalham incríveis iniciativas de promoção humana.


Em “A cultura da favela como ferramenta de transformação social”, a jornalista Layane Moises Coelho escreveu: “Grafite, passinho, rap, funk, teatro, rodas de samba, são algumas das manifestações culturais que afirmam as características de um grupo que, através da arte, sobrevive, ajuda suas famílias, educa e mostra ao mundo que a favela produz conteúdos importantíssimos para a reflexão humana.”


É verdade que nem todas as iniciativas culturais prosperam, apesar das melhores intenções, porque carecem de um planejamento menos idílico e mais realista, ou porque os impactos da pandemia da Covid-19 são inapeláveis. Nesta edição destacamos algumas conquistas vitoriosas que, a duras penas, travam uma cruzada pela sensibilização, autoestima e pertencimento da população periférica no contexto da sociedade humana.


Algumas iniciativas nasceram da criatividade inata de jovens nascidos e criados em ambientes desfavorecidos. Outras vieram de fora para transformar os seus beneficiados em protagonistas do seu próprio desenvolvimento. Uma dessas iniciativas, reconhecida pelo Brasil inteiro, nasceu de um incêndio que arrasou parte da favela Heliópolis, na capital paulista, em 1996. Diante da tragédia, o maestro Silvio Baccarelli ofereceu a uma escola pública do bairro o que melhor sabia fazer: ensinar crianças e adolescentes da região a tocar instrumentos de orquestra. No início, pensava-se que os alunos seriam refratários. Nada disso: logo 36 alunos se deslocavam até o Auditório Baccarelli. Em 2005, a instituição se mudou para Heliópolis, onde fundou a Orquestra Sinfônica Heliópolis, através da qual oferece formaçao musical gratuita a jovens da comunidade. Em 2010, a orquestra realizou a primeira turnê pela Europa. E não parou mais como agente de transformação social por meio dessa arte.


Por sua vez, o projeto Favela Mundo, referência na ONU como modelo de inclusão social nas grandes cidades, nasceu em 2010 com o diferencial de ser itinerante. Por onde passa, ensina ballet, jazz, hip hop, musicalização, teatro e violão para crianças e adolescentes vulneráveis. A Favela Mundo também ajuda as crianças e adolescentes a se relacionarem através da comunicação não-violenta, a conviverem em paz, a entenderem que cada pessoa tem limites e características próprias. Os resultados vêm nos boletins: crianças que tinham dificuldades de aprendizagem e de comportamento, apresentam melhoras substanciais. Marcelo Andriotti, diretor da ONG Favela Mundo, explicava em 2018:


“Normalmente, passamos um ano em cada local, mostrando para os alunos que a escola é também um lugar para exercitar a imaginação, brincar e fazer amigos, tudo através da arte. Mudamos o local por onde passamos, resignificamos o ato de estudar. Com isso o aluno passa a ter muito pais prazer de frequentar a escola”.

E ressaltou: “Chegamos em favelas que as crianças não falavam umas com as outras porque seus territórios seriam “rivais” e, através de oficinas, as ensinamos a lidarem umas com as outros e a se verem como amigas”.


Outra iniciativa é a do projeto Periferia Brasileira de Letras que visa criar uma rede de coletivos literários de favelas e periferias em nove capitais brasileiras para reivindicar políticas públicas no campo da leitura, livro e literatura adequadas às demandas por direitos pelos seus direitos, além da promoção da saúde em seus territórios. As iniciativas precisam estar em áreas fragilizadas das regiões metropolitanas de Porto Alegre, Brasília, Natal, Recife, Salvador, Fortaleza, São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.


Recentemente, o jornal “Estado de Minas” publicou a série “Eu Sou Favela” com o perfil de líderes comunitários de Belo Horizonte. Um deles é Júlio César Pereira Souza, de 44 anos e há quase 30 no diálogo com o poder público para auxiliar as comunidades mais pobres na busca por direitos básicos, como alimentação digna, casa própria, saneamento e educação. Júlio detectou que muitos problemas de saúde estavam relacionados justamente às más condições na periferia: “Vimos que 60% de doenças eram ligadas à falta de saneamento básico, como leptospirose, xistose e outras doenças provocadas por vermes. Muitas crianças adoeciam muito”, comenta.


No início, a execução do seu trabalho era complicada, já que as associações de bairro não tinham legitimidade para enviar ofícios ao poder Executivo sobre demandas. “Mas, a partir do momento em que as lideranças locais começaram a exigir o direito de fazer convênios, emitir ofícios ao poder público, as comunidades passaram a ter mais autonomia”, explica Júlio.

Como Júlio, inumeráveis jovens não medem esforços para que os direitos básicos possam chegar à faixa mais vulnerável nas vilas e favelas das cidades brasileiras. A dinâmica dessas lideranças tem um olhar próprio do ambiente onde vivem, pois a favela exige pensar a perspectiva da liderança coletiva, na qual líderes e liderados constroem juntos a liderança, o protagonismo e os seus resultados.

E hoje a pandemia da Covid-19 torna mais pesado esse trabalho coletivo pelo país afora. Entretanto, muitos jovens fazem bom uso de sua criatividade em prol e si mesmos e dos demais excluídos da multifacetária sociedade brasileira.










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